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Palavrões: Uma reflexão sobre a vivência – Elis Barbosa

ClariVivências
   As crianças são nossa responsabilidade. Todo mundo já sabe e repete, irrefletidamente. O que pouco se fala é no que isso implica. Elas também são o nosso tormento. A dose diária da obrigação, a coragem necessária para ser o melhor exemplo. Somos observados e cuidadosamente copiados. Imitados em gesto, tom de voz e discurso. Quase como numa mímica debochada, e nem sempre é fofinho.
 No trânsito: Eu dirigindo e a filha viajando, de repente eu (bem irritada): E aí amigo, vai ou não vai?! Filha: Babaca! com a boca cheia, babando no final.

 Eu ignoro o fato. Ela: É babaca ele, mãe?

 Outro dia no trânsito: Depois da fechada, tentando manter a linha eu expiro: Ah, é foda! Filha: É foda, mamãe? Eu ainda transtornada: É foda, minha filha! Me arrependi em seguida, pensando no que poderia vir dali. Ela pirou com a palavra e ficou mascando: Foda, foda, foda…

 Como lidar?! Esses palavrões são escutados em casa, da boca da mãe. A educação recebida pela criança não é só aquela que lhe é oferecida em palavras de ordem ou conselho, mas a que ela observa e absorve. Não ensino minha filha a falar palavrão como ensino a escovar os dentes, claro, mas ela os escuta com frequência. O que fazer? 

 Ora, alguém informe a essa mãe que é preciso parar de falar palavrão na frente da criança. Isso é unanimidade, é reproduzir sem pensar. Não vai acontecer, é difícil tirar vício de língua. Será que só tem essa moral? Que só tem a permissividade do “se eu faço não posso impedir que o filho faça”, ou a rigidez do “pare de fazer, pare de falar, pare de ser e seja o dever”? E a marca da diferença entre pais e filhos, adultos e crianças, cuidadores e cuidados, responsáveis e incapazes?  

 Não somos iguais, e marcar as diferenças é fundamental. Não apresentar essas diferenças infantiliza os adultos pela obrigação de terem uma conduta como a que deve ter a criança, negando a estrada trilhada que permitiu a construção da sua própria conduta e a conquista de ser o que se quer. Nega a criança a percepção de que existe para o que crescer. Nem tudo que pode um adulto a criança também pode, está na lei, é correto. Esse jeito de criar afasta as pessoas, quem é que vai querer passar tempo com as crianças tendo de se policiar constantemente quanto ao que fala ou faz. Sendo como se deve ser, não como de fato se é. Será que não vem daí aquele ranço de hipocrisia tão farto entre aqueles que deveriam ser os mais íntimos? Aquela sensação triste de que a gente não se conhece direito.  

 Então vou despejar o que eu quiser, na hora que eu quiser, na cara dos filhos, certinho? Melhor não, mais por uma questão de bom senso. Lembre-se: eles vão devolver tudo pra você. O mais importante, eles o farão com a força da certeza de que estão agradando. Aprenderam conosco. Recomendo fazermos na frente das crianças o que vamos suportar receber de volta depois.  

 No trânsito, a Filha: É babaca ele, mãe? Chateada de ver o aprendizado rápido da menina, eu: Nem sei se é filha, deixa isso pra lá. Ela: É babaca. BABACA. BABABABACA. (Boca escancarada, fica repetindo em diferentes tons de voz, prazerosamente. Ainda tem isso, a palavra é uma delícia de falar!)

Eu: Filha, já deu. E não pode chamar ninguém de babaca, é feio ficar chamando as pessoas de babaca. Ela me olha confusa. Eu: Cara, você só chama alguém de babaca se você não aguentar, mas não pode! E dá briga, entendeu? Ela balança a cabeça afirmativamente. E ficou repetindo babaca silenciosamente, pra si, elaborando a novidade.

 Outro dia no trânsito, ela pirou com a palavra e ficou mascando: Foda, foda, foda… Eu: Filha, chega, já ouvi. Ela não para, me olha provocante. Eu: Presta atenção, essa é daquelas palavras que a gente fala uma vez só. Você já falou várias. E não pode falar isso em qualquer lugar ou pra qualquer pessoa, principalmente na creche (beijo para as tias mais queridas!). Tá ouvindo filha? FILHA? Ela: ouvi mamãe. Eu: Principalmente na creche, entendeu? Ela: Entendi. E recomeça o mantra: foda, foda, foda… Eu: Tu não entendeu. Eu falei o quê?! 

 Ela: Eu não tô falano na tcheche.

 Não vou mudar minha conduta pra me adequar simplesmente, vou rever minhas atitudes, uma a uma, pensar sobre elas olhando nos olhos da minha menina, tendo em mente que acima de qualquer verdade está o laço de confiança que trançamos até aqui. Vou reencontrar meus motivos, conversar com os medos, visitar familiares. Terei de contar de novo pra mim a história de cada cicatriz para reconhecer-lhe a atualidade do sentido. Isso ainda faz sentido pra mim? Os comprometidos vão além da sobrevida e experimentam trocas incríveis com versões tão melhores de si, os filhos. Só é possível dizer do que se sabe, assim quanto mais soubermos de nós melhores as chances de nos comunicarmos com as crianças. 

 E espero, tranquila, pelas histórias que os “vexames” vão me render. Meu temor? A filha fazendo uso correto da palavra e eu ter pouco ou nenhum argumento pra sociedade.

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